domingo, 30 de agosto de 2015

O Génio Maligno: filmes 2

Mais uma linha de silêncio, assinalando agora mais de dois anos de mutismo.
Retomando as referências aos filmes anteriormente anunciados, temos eXistenZ, realizado por David Cronenberg em 1999. Passado num futuro* não muito distante, revela-nos uma cultura na qual os criadores de jogos têm um estatuto olimpicamente elevado e é organicamente — através de “bio-portas” (conetores orgânicos) — que os jogadores habitam os jogos. A mais recente criação de Allegra Geller, o sistema eXistenZ — que ela pretende testar publicamente —, é tão imersivo, gráfica e emocionalmente, que a fronteira entre realidade e escapismo se torna difusa — a tal ponto que existem fundamentalistas (denominados ‘realistas’) dispostos a combater (com o assassínio, inclusivamente, pois sobre a designer de eXistenZ pende uma espécie de fatwa de morte) a perversa subversão de fronteiras que os jogos virtuais de grande profundidade e perfecionismo simulatórios (como eXistenZ, particularmente) promovem, induzindo efeitos deformantes na perceção da realidade. Estas premissas legitimam a delirante roleta-russa que o argumento (do próprio Cronenberg) habilmente providencia, culminando num final ambíguo.
A relação que este filme conserva com a experiência mental do Génio Maligno é um pouco mais lateral do que Matrix, convocando, sobretudo, o universo contemporâneo dos jogos de realidade alternativa (Alternative Reality Games ou ARG, para abreviar). Uma pesquisa pouco esforçada na Internet prontamente nos revela os contornos deste universo. Esses jogos configuram-se em redes narrativas que tomam o mundo real como plataforma; há uma história em tempo real, interativa, e uma participação intensa dos jogadores — tão intensa que o desenrolar da história depende, em grande parte, das ações dos participantes ou jogadores, que (recorrendo a múltiplos formatos, como séries televisivas, sites fictícios e sites reais — com números de telefones, por exemplo, que funcionam realmente e, jogos de cartas, música...) interagem entre si e com personagens controladas internamente pelos seus designers — que, embora definam previamente regras (explícitas e implícitas) para assegurar a coerência interna da história e da sucessão de cenas e interações, admitem que tais regras podem ser alteradas por ensaio e erro.
Exemplos deste tipo de narrativas encontra-se, por exemplo, no site  Webfiction Guide (http://webfictionguide.com/).

*A tentação de jogar com palavras da temporalidade, ainda que comezinha, é muito forte — e porque havemos de resistir-lhe?

Paulo Lopes

domingo, 20 de janeiro de 2013

O Génio Maligno: filmes

Retomo agora, sem explicações escusadas (fazendo de conta que não houve um hiato de silêncio de mais de um ano), as entradas já anunciadas. Nesta (a 4ª sobre o génio Maligno), os filmes que ilustram esta experiência ou variações sobre ela. Limitar-me-ei a enumerá-los e justificar sucintamente a pertinência da sua inclusão no contexto desta série de entradas.
Comecemos pelo mais famoso deles, The Matrix. Um dos mais emblemáticos problemas ilustrados pelo filme é justamente a possibilidade de estarmos numa situação de engano permanente (quanto àquilo que habitualmente tomamos como garantidamente real ou verdadeiro, i.e., a hipótese de estarmos numa espécie de cuba (com a diferença de conservarmos o corpo):  com terminais nervosos ligados a uma central de computação, de tal forma que toda a nossa experiência resulta de manipulação neuronal altamente sofisticada. É, pois, o caso em que grande parte das nossas crenças seriam ilusórias. 
Há vários sites e blogs com referências ao filme (assim como documentários e livros) que o leitor interessado poderá explorar. Uma pesquisa preguiçosa no Google indica-nos alguns, em inglês: 

  1. http://thematrix101.com/contrib/myoung_aitptm.php 
  2. http://www.sparknotes.com/film/matrix/section1.rhtml; 
  3. http://neurophilosophy.wordpress.com/2006/12/11/the-philosophy-of-the-matrix/.
Paulo Lopes

domingo, 18 de setembro de 2011

O Génio Maligno: cérebros numa cuba — a crítica de Hilary Putnam


Imagine que o supercomputador é tão avançado e eficiente que logra fazê-lo crer que está sentado a ler estas palavras sobre o divertido e tresloucado cenário de um cientista que é capaz de retirar o cérebro de uma pessoa e colocá-lo numa cuba com nutrientes! Sempre há gente com uma imaginação! — pensa o leitor, com um sorriso complacente ou impaciente.
Se porventura o leitor for um cérebro numa cuba (hipótese que, aparentemente, não consegue excluir), então a maior parte das suas crenças sobre o mundo terão que ser falsas.
Tal como Descartes, porém, Putnam faz o papel de advogado do diabo — e, convenhamos, que engenhosa armadilha lançaram aos céticos! Mas agora, diriam eles — a machadada final ou o golpe de misericórdia nas ambições do cético, conforme as sensibilidades —, temos que pôr fim à brincadeira e mostrar que este cenário é incoerente. Putnam lança-se afoitamente à tarefa (se o leitor fosse um cérebro numa cuba, se pudesse saber que é um “cérebro numa cuba”, então a ilusão em causa seria ao mesmo tempo verdadeira! Ou seja: “se sou um cérebro numa cuba, então ‘sou um cérebro numa cuba’ é falso").
Parece-lhe convincente? Há quem tenha reservas. Mas há que reconhecer que consegue, pelo menos, mostrar que um cérebro numa cuba não poderia ter a crença (saber) que é um cérebro numa cuba.

Paulo Lopes

sábado, 10 de setembro de 2011

O Génio Maligno: Hilary Putnam (cérebros numa cuba)


Imagine — como um exercício indulgente e extravagante do raciocínio hipotético — que foi submetido, por um cientista genial e perverso, à seguinte operação: o seu cérebro foi retirado do seu crânio, colocado numa cuba com nutrientes capazes de o manter vivo e ligado a um supercomputador cujo programa produz impulsos elétricos que estimulam o seu cérebro do mesmo modo que um cérebro num corpo é estimulado pela perceção de objetos externos; as suas experiências, sensitivas ou motoras, seriam qualitativamente indistinguíveis das experiências que um cérebro num corpo proporcionaria. Assim, seja um cérebro numa cuba ou não, claro que lhe parece que está a olhar para um texto num monitor; a única diferença (mas uma diferença abismal, é certo) é que, no primeiro caso, não existiria nenhum monitor à sua frente.
Um cenário da mais sombria fantasia? Bem, é o tipo de comentário que o leitor faria, se fosse um cérebro numa cuba.
Claro que o leitor não acredita nessa extravagante hipótese. Como poderia fazê-lo, se fosse realmente um cérebro dentro duma cuba?  

Paulo Lopes

sábado, 3 de setembro de 2011

O Génio Maligno: René Descartes


O que está ao abrigo da dúvida?
O argumento cartesiano do sonho sugere a possibilidade de que a nossa vida seja um sonho (porque não podemos racionalmente excluir, de modo definitivo, a hipótese — remota, sem dúvida —, de que estamos a sonhar). Um dos primeiros exemplos que nos ocorre avançar para contrariar esta possibilidade é uma das mais simples operações aritméticas: 2+2=4 é uma proposição verdadeira, quer estejamos a dormir quer estejamos a sonhar, não é verdade? É possível que não seja verdadeira? Descartes pega justamente nesta possibilidade, radicalizando mais a dúvida: não seria possível existir um génio maligno todo-poderoso (assim como uma espécie de deus maligno) capaz de nos enganar sistematicamente, mesmo naquilo que consideramos óbvio? Se um hipnotista consegue induzir, em muitas pessoas, os estados mentais e as crenças mais extravagantes — como, por exemplo, levar alguém a contar até 10 sem se aperceber que saltou o 4 —, mais facilmente o faria um génio maligno, se tal ser existisse.
Assim, pois, uma crença do género da proposição 2+2=4 (que tomamos por ‘obviamente verdadeira’) poderia ser falsa, se o génio maligno nos enganasse sistematicamente.

Paulo Lopes

domingo, 28 de fevereiro de 2010

O Génio Maligno (e derivações apropositadas): sumário

A hipótese do Génio Maligno, de René Descartes, é outra emblemática experiência mental da história da filosofia. Encontra-se na primeira meditação das Meditações sobre a Filosofia Primeira (Meditationes de Prima Philosophia, a primeira versão, latina, de 1641 — ou Meditações Metafísicas, título da tradução francesa, de 1647). Mas as suas derivações não são menos carismáticas.
Eis então o sumário das próximas entradas (decompostas em trechos relativamente curtos): 1 — a hipótese do Génio Maligno descrita por Descartes; 2 — a hipótese do cérebro numa cuba, de Hilary Putnam; 3 — a ilustração cinematográfica destas ideias e sugestões conexas (Matrix, sim, mas também The Thirteenth Floor, Abre los Ojos, Existenz e Eternal Sunshine of the Spotless Mind); 4 — o argumento da simulação, de Nick Bostrom; 5 — críticas.

Paulo Lopes

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010